Nas Garras do Cão Feroz
Na ilha de Boriquén, que Colombo chamara de San Juan Bautista, após te-la descoberto em sua segunda viagem, só havia dois seres que os nativos e seus aliados caribes temiam. (1)
O primeiro era Diego de Salazar, o espanhol que mais se destacara na conquista da ilha. Tinham tanto medo dele que evitavam dar batalha na direção de onde ele vinha. Mesmo muito doente, Salazar era levado pelo exército para que os índios soubessem que ele estava presente, pois quando viam que era outro capitão que chefiava a tropa, falavam com desprezo:
- Não tenho medo de ti! Tu não és Salazar.
O segundo era o fiel companheiro de Salazar, o cão de guerra chamado Becerrillo, vindo da Ilha de Hispaniola, que pertencia ao Governador de Boriquén, Juan Ponce de León. (2) Esse cachorro castanho avermelhado de focinho preto tinha tamanha importância nas guerras que se travavam contra os indígenas que chegava até a ganhar o soldo de um balesteiro, que ia para o bolso de seu dono. Além de enorme ferocidade em combate, Becerrillo era muito inteligente. As pessoas se admiravam, pois parecia uma pessoa. Conhecia aos amigos e não lhes fazia mal ainda que lhe tocassem. Era capaz de distinguir um índio caribe, guerreiro canibal que povoava as pequenas Antilhas e costas de terra firme, inimigo dos espanhóis, de um aruaque, povo tímido e pacífico que povoava as grandes Antilhas. Se um índio fugisse, bastava dizer-lhe: "ido es" (se foi) ou "buscaldo" (busque-o), que ele trazia de volta o fugitivo, ainda que estivesse no meio dos inimigos, ou lhe despedaçava. O poder de ataque de Becerrillo em um campo de batalha era comparado ao de três soldados espanhóis montados a cavalos. (3) Os índios tremiam mais se fossem lutar com Becerrillo acompanhado de 10 espanhóis, do que se fossem enfrentar 100 espanhóis sem ele. Tal era a carnificina que nos campos de batalha esse cão fazia, despedaçando e arrancando nacos de carne de seus oponentes. Maravilhados, os cristãos o tinham como um Anjo enviado por Deus. (4)
A guerra entre espanhóis e os ilhéus tivera início após a chegada de Ponce de León em Boriquén, em 1509. Tendo conhecimento através de índios que a ilha era muito rica, ele conseguira licença do Governador Ovando, e partiu de uma caravela em São Domingo em direção dela. Tomou terra donde senhoreava Agueibana, o qual o acolheu muito amigavelmente e se tornou cristão com sua mãe, irmãos e criados. Deu-lhe uma sua irmã por amante, como era o costume, naquela terra, dos senhores para honrar a outros grandes homens que recebem por amigos e hóspedes, e levou-o à costa do norte para coletar ouro. Deixou Juan Ponce certos espanhóis com Agueibana e retornou a São Domingo com a mostra do ouro e gente. Mas como partira Nicolás de Ovando para a Espanha, e governava o Almirante Don Diego Colombo, voltou a Boriquén, com sua mulher. Escreveu, depois, a Ovando, Comendador-mor de Alcántara, o qual lhe enviou a governação daquela ilha, mas com sujeição ao Vice-Rei e Almirante das Índias. Ponce de León fundou Caparra, que se despovoou por ter assento em pântanos de muita acidez. Povoou a Guanica, que se desapareceu pelos muitos e importunos mosquitos. E então ergueu Sotomayor e outras vilas. (5) Os índios, livres e pacíficos, que haviam recebidos os espanhóis como irmãos, foram reduzidos a escravos destes. Muitos morriam nos trabalhos forçados. (6)
Os ilhéus chamaram os caribes em sua defesa, que atiravam flechas envenenadas sem antídoto. No princípio, pensavam que os espanhóis fossem imortais. Por saber a verdade, Oraioa, cacique de Jaguaca, após consetimento de todos os outros caciques, se encarregou de provar que não eram. Mandou que afogassem a um certo Salcedo, que parou em sua casa, atravessando o rio Guarabo, os quais lhe afundaram sob a água, carregando-o nos ombros. E como se afogou, tiveram aos demais por mortais, e assim se confederaram e se rebelaram. Trataram de matar os castelhanos que estivessem descuidados nas minas e fazendas, morrendo assim mais de 100 espanhóis. (7)
Ponce de León, sabendo das mortes, reuniu e armou o melhor que pôde os espanhóis remanescentes da ilha, que eram pouco mais da metade que havia outrora. E saiu para guerrear os ilhéus e os caribes. Teve início então o grande morticínio indígena nas lutas que se seguiram (8), nas quais, como já foi dito, se distinguiram Salazar e Becerrillo.
Como resultado dessas lutas, os espanhóis faziam muitos prisioneiros, tanto homens, quanto mulheres. Como passatempo, e para embravecer mais ainda os seus cães, usados como seus auxiliares nas batalhas, separavam desses prisioneiros aqueles que consideravam como descartáveis, e os entregavam para serem destroçados por estes animais ferozes. (9)
Foi numa manhã, antes da chegada do Governador Juan Ponce de León, que o Capitão Diego de Salazar, entregou uma carta na mão de uma índia já de idade avançada, que havia sido feita prisioneira após o combate contra o Cacique Mabodomoca, durante a noite:
- Anda, velha! Leva esta carta ao Governador, que está em Aymaco.
Aymaco ficava a menos de uma légua dali. A desgraçada seguiu feliz em sua missão, por imaginar que após cumpri-la seria liberta. Mas pouco se afastara de onde estivera detida, sentiu que uma criatura estava correndo em sua direção. Era o Anjo de Deus dos cristãos que habitavam em Boriquén... mas que para o povo dela mais parecia ser um monstro saído das profundezas do Inferno descrito pelos padres espanhóis. O malvado Salazar mandara soltar Becerrillo atrás dela com a ordem de despedaça-la.
Desesperada ao ver Becerrillo vindo com enorme fúria em sua direção, a anciã tomou, então, uma atitude que surpreendeu o cão.
Sentou-se no chão, e dirigiu a palavra para ele em sua língua:
- Cão. Senhor cão, eu vou levar esta carta ao senhor Governador.
O cão se deteve. E sua face feroz mudou para uma de mansidão. Mostrou a mulher para ele a carta que levava, e continuou:
- Não me faças mal, senhor cão.
O que teria se passado naquela mente canina, jamais saberemos. Mas o comportamento de Becerrillo que se seguiu foi de certa forma enigmático e surpreendente.
Chegou-se ele para perto da índia. Ergueu uma perna e mijou sobre ela, como se estivesse mijando sobre uma parede.
Espantados ficaram os cristãos com Becerrillo. Viram em seu ato algo de misterioso. O Capitão Salazar, ao saber da clemência que o cão usara para com a velha índia, mandou-o atar. Chamaram de volta a pobre índia, que veio tremendo de medo, e se sentou.
Pouco depois chegava o Governador Juan Ponce de León. Sabendo do caso, não querendo ser menos piedoso com a índia do que havia sido o cão, ordenou que a libertassem e que ela fosse onde quisesse ir. E assim foi feito. (10)
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1 - GÓMARA. Francisco López de. Historia General de las Indias. Viajes Clásicos. Calpe. Madrid (não consta ano da edição). Tomo I. Capítulo XLIV. p. 94.
San Juan Bautista é hoje Porto Rico.
Descoberto no ponto de vista europeu.
2 - OVIEDO Y VALDÉS. Gonzalo Fernandes de. Historia General y Natural de las Indias. Real Academia de la Historia. Madrid, 1851. Primeira Parte. Livro XVI , Capítulo XI, p. 483.
Ilha de Hispaniola. Ilha de São Domingos.
Juan Ponce de León. Célebre pela busca da Fonte da Juventude, que estaria, segundo o relato de indígenas, numa ilha chamada Boyuca, que tornaria moços aos velhos. Andou perdido e faminto seis meses entre muitas ilhas, sem encontrar nenhum indício da tal fonte. Acabou chegando em Bimini, numa Páscoa florida do ano de 1512, e acabou chamando esse lugar de Florida (Flórida). (GÓMARA, Francisco López de. Historia General de las Indias. Viajes Clásicos. Calpe. Madrid (não consta ano da edição). Tomo I. Capítulo XLV, p. 97).
3 -GÓMARA, Francisco López de. Historia General de las Indias. Viajes Clásicos. Calpe. Madrid (não consta ano da edição). Tomo I. Capítulo XLV, p. 96.
Cachorro castanho avermelhado de focinho preto. Essa é a única descrição deixada pelos cronistas que temos de Becerrillo. Há quem deduza que ele tenha sido um alano espanhol, cão de guerra que se supõe ter sido introduzido na Espanha pelos bárbaros alanos.
Balesteiro. Besteiro. Soldado que manejava a balestra (besta), arma constituída de um arco sobre uma haste, com gatilho, que disparava virotes (dardos) com velocidade e força capaz de atravessar a maioria das armaduras da época.
4 - LAS CASAS. Bartolome de. Historia de las Indias. Edição, prólogo, notas e cronologia de André Saint-Lu. Biblioteca Ayacucho. Caracas, 1986. Livro II, Capítulo 55, p. 203.
5 - GÓMARA, Francisco López de. Historia General de las Indias. Viajes Clásicos. Calpe. Madrid (não consta ano da edição). Tomo I. Capítulo XLV, p. 95.
Almirante Dom Diego Colombo. Filho do navegador e Almirante Dom Cristóvão Colombo.
6 - LAS CASAS. Bartolome de. Historia de las Indias. Edição, prólogo, notas e cronologia de André Saint-Lu. Biblioteca Ayacucho. Caracas, 1986. Livro II, Capítulo 55, p. 202.
7 - GÓMARA, Francisco López de. Historia General de las Indias. Viajes Clásicos. Calpe. Madrid (não consta ano da edição). Tomo I. Capítulo XLV, p. 95 a 96.
8 - LAS CASAS. Bartolome de. Historia de las Indias. Edição, prólogo, notas e cronologia de André Saint-Lu. Biblioteca Ayacucho. Caracas, 1986. Livro II, Capítulo 55, p. 203.
9 - Ibd., p. 203-204.
Lançados para serem destroçados pelos cães. Alguém poderá enxergar estes atos de desprezo pela vida humana dos conquistadores espanhóis como racismo, desprezo por pessoas de outras etnias. Na verdade, eles eram cruéis com todo aquele que fossem seus adversários. É só vermos a história de Lope de Aguirre, morto na Venezuela, que se rebelara contra o Rei Felipe II, da Espanha. Embora fosse da baixa nobreza, o Governador Pablo Collado mandou esquartejar o cadáver e espalhar os pedaços pelas estradas. A cabeça, por memória, deu à gente que veio do Tocuyo, onde foi posta numa jaula de ferro, permanecendo nessa gaiola de proteção por muitos anos na praça. A mão esquerda foi encaminhada para a vizinha Valencia, e a direita foi entregue ao Capitão Pedro Bravo, para que a levasse à Mérida. Mas depois uns e outros, considerando a inutilidade de tão infames jóias, as deram aos cães, para livrarem-se do inconveniente que causavam ao olfato. (OVIEDO Y BAÑOS. D. José de. Historia de la Conquista y Población de la Provincia de Venezuela. Ilustrada com notas e documentos pelo Capitão de Navio Cesareo Fernande Duro. Luis Navarro, Editor. Madrid, 1885. Tomo I, Capítulo IX, p. 346).
10 - OVIEDO Y VALDÉS. Gonzalo Fernandes de. Historia General y Natural de las Indias. Real Academia de la Historia. Madrid, 1851. Primeira Parte. Livro XVI , Capítulo XI, p. 484 a 485.
Morte de Becerrillo. O Capitão Sancho de Arango havia sido ferido pelo bravo Cacique Caçimar, que viera invadir a Ilha de San Juan, atual Porto Rico, para vingar a morte de seu irmão Yahureybo. Mas Sancho foi salvo por Becerrillo, que logo depois se lançou na água atrás de um índio. Um outro, fora d'água, lhe deu uma flechada envenenada enquanto nadava em busca de outro índio, e logo veio a morrer. A morte do heroico e valente cão foi tão sentida pelos cristãos, que sua perda foi tida como maior do que a de alguns espanhóis que também morreram naquele dia. O Capitão Gonzalo Fernandes de Ovideo y Valdés diz que chegou a ver em terra firme um filho de Becerrillo, chamado Leoncillo, que pertencia a Vasco Nuñez de Balboa, que fora tão valente como o pai. (OVIEDO Y VALDÉS. Gonzalo Fernandes de. Historia General y Natural de las Indias. Real Academia de la Historia. Madrid, 1851. Primeira Parte. Livro XVI , Capítulo XI, p. 483a 484).
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