E Ninguém se comoveu com a Execução do Idoso Fernão Bezerra Barbalho...


 


    Praça Terreiro de Jesus, Salvador, Bahia. Dia 30 de janeiro de 1687. Ávidos por ver sangue, uma multidão se aglomera em torno do cadafalso. Sobre esse tablado se encontra o carrasco segurando firme um machado. Diante dele, de joelhos, um ancião. A macabra plataforma de madeira, acostumada a receber o sangue do tipo da maioria daqueles espectadores, se embebedará hoje com algo mais refinado, mais raro. O condenado que ali se encontra vinha da nobreza. (1)

    Aquele infeliz, atração principal daquele espetáculo degradante, era o outrora orgulhoso e respeitado coronel de milícias Fernão Bezerra Barbalho, filho de Fernão Bezerra Felpa de Barbuda, o qual era irmão do famoso mestre-de-campo Luiz Barbalho Bezerra, que se distinguira heroicamente nas guerras holandesas. (2) Rico pernambucano, era senhor de um engenho na freguesia da Várzea, pouco mais de uma légua distante de Recife. (3)

    Ora, aconteceu de minha 12° avó Isabel Cavalcante, viúva de Manoel Gonçalves Cerqueira, meu 12° avô, se casar com Francisco Bezerra, resultando deste último matrimônio duas filhas - Isabel de Goes, que se casou com seu tio paterno Antônio Bezerra; e Ana Bezerra, que se casou com o coronel Fernão Bezerra Barbalho. (4)

    Ana e Fernão tiveram de sua união quatro filhas e dois filhos.

    Retornando de uma viagem, acompanhado pelos seus dois filhos Fernão e Antônio Bezerra, e alguns escravos, o coronel Fernão quando estava passando pela vila de Goiana encontrou um escravo seu que vinha do engenho. Dizia trazer notícias que interessavam a honra e reputação da família daquele rico senhor. Contou que vira uma das filhas receber durante o véu da noite um amante. Este desconhecido atrevido, segundo o escravo, profanava o decoro devido à semelhante casa. E acrescentou o escravo, que embora essa filha estivesse sendo ajudada pelas irmãs e a mãe em encobrir sua aventura amorosa, tomando toda a cautela, já não estava mais conseguindo deixa-la oculta. O coronel fica furioso. Acompanhado de seu filho mais velho e dos escravos, caminhou apressado para a Várzea. Chegando à sua casa, toma as portas da rua, e sobe acima de arma desembainhada. A esposa e as filhas, sem nada saber, saem para recebe-lo carinhosamente, mas ele, como fera ensandecida, cai sobre elas, atravessando-lhes cruelmente o peito com sua lâmina. Ouvindo a gritaria de pânico de sua tia materna e das primas, Marcos Bezerra, que se achava no lugar, tenta entrar na casa com o intento de parar aquela tragédia. Mas é impedido pelos homens que guardavam a porta, e leva dois tiros de uma pistola no peito. Uma escrava ao presenciar os primeiros golpes nas suas senhoras, parte em direção de uma das mocinhas para salva-la. (5) Por ser a menor delas, a escrava consegue esconde-la de tal forma que ninguém a encontra.  As duas correm depois para a casa de um morador, vizinho ao engenho. (6)

    A verdade depois vem à tona. O escravo que caluniara uma das filhas de Fernão Bezerra não o encontrara para lhe dar essa notícia. Na verdade estava fugindo do castigo que a Senhora lhe mandara dar por crimes que havia cometido na ausência do Senhor. Acabara topando com o coronel, e com perversidade e forma de se vingar de sua patroa, inventara aquela estória. Os parentes de Fernão Bezerra se iram contra ele, e o tratam como o pior criminoso do mundo. Dona Isabel de Goes, mãe de Marcos Bezerra, o acusa à Justiça. Sem encontrar abrigo em parte alguma, (7) o cruel assassino acaba preso e processado pelo ouvidor-geral de Pernambuco, e condenado à pena capital, foi enviado à Bahia para aí ser executado, uma vez que faltava àquele magistrado competência para o caso, em virtude das disposições legais então vigentes. 

    O velho, de joelhos se inclina, repousando seu pescoço no cepo. O machado desce com fúria, e a cabeça do desgraçado rola por terra. 

    O filho matricida e fratricida, tão criminoso como seu pai naquela tristíssima tragédia familiar, vai se esconder da justiça nos sertões do Rio Grande do Norte. Um mulato de má índole o assassina com um tiro, "acabando por ser sepultado nos desertos daquelas remotas paragens". (8)


* * *


    Intrigas familiares causadas por escravos domésticos não foram nada incomuns na História. Conta Agostinho de Hipona, conhecido como Santo Agostinho, que viveu na província romana da Numídia, norte da África, por volta do final de 300 e início de 400 da era cristã, que no início a relação entre sua avó paterna e sua mãe não era nada boa. A avó vivia irritada com sua mãe por causa de mexericos de escravas malévolas. Mas sua mãe conquista a sogra com paciência e mansidão. A avó, com o tempo acaba denunciando ao filho Patrício, pai de Agostinho, as fofoqueiras que viviam causando intriga e lhe roga para que as castigue. Patrício, obediente à mãe, e para restaurar a harmonia da casa, manda flagelar as culpadas. A avó de agostinho declarou que podia esperar igual castigo quem falasse mal da sua nora com a finalidade de lhe agradar. A partir daí sogra e nora viveram em harmonia. (9)


                                                                                * * * 


    Fico imaginando quantos escravos audaciosos se beneficiaram ao descobrir certos segredos de suas senhoras. Quantas que traíam seus maridos depois tiveram que se deitar com seus escravos para não serem denunciadas? E as sinhás arrogantes, tidas ainda por donzelas? O que algumas devem ter feito para que seus violentos pais não soubessem que já haviam sido defloradas...

* * *

  Diferente do que é divulgado em algumas obras, salvo os autores delas tenham encontrado algum relevante documento, o coronel Fernão Bezerra Barbalho não conseguiu matar todas as filhas. Então, deve ter muita gente por aí descendente dele. Talvez até eu. Quanto ao outro filho, a história se calou. E ao destino do escravo caluniador, também.

_______________

1. COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Anais Pernambucanos, 1666-1700. Vol. IV. Secretaria do Interior e Justiça. Arquivo Público Estadual. Recife, p. 292.

Cadafalso. A imagem do post, criado pelo auto com auxílio da IA, é meramente ilustrativa, apresentado erroneamente a execução em um piso.

2. Filho de Fernão Bezerra Felpa. É como diz, inseguramente, Borges Fonseca, o qual afirma que recebeu essa informação sobre os Barbalhos do seu tio Manoel Barbalho, que a enviou pelo coronel Francisco Correia de Azevedo. O tio mandara dizer não ter certeza. Quanto à mãe, era uma irmã de D. Isabel de Goes, segundo o mesmo. (FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana. Vol. II. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Volume XLVIII, 1926. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1935, p. 109) Possivelmente um outro casamento que tivera Felpa, já que era casado com Camilla Barbalho (FONSECA, vol. 2, págs. 183 e 184), a qual era filha de Braz Barbalho Feyo e de Leonor Guardes. A menos que tenham confundido o nome da Ignez Guardes, irmã de Leonor, com o de Ignez Goes. (FONSECA, Antonio José Victoriano Borges da. Nobiliarchia Pernambucana. Vol. I. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Volume XLVII, 1925. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1935, p. 139).

Coronel de Milícias. COSTA, p. 292.

3. COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1904, p. 475.

4. FONSECA, vol. I, p. 164 a 165.

5. COUTO, p. 475 a 477.

6. PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Segunda Edição Revista e anotada por J. G. Goes. Editor Francisco Arthur da Silva. Lisboa, 1880, p. 218.

7. COUTO, p. 475 e 476.

8. COSTA, p. 293.

9. SANTO AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos, S. J. e A. Ambrosio de Pina, S. J. - 9.20. Mônica, esposa modelar.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Dia em que o REI FELIPE II viu sua impecável ÁRVORE GENEALÓGICA e a da maioria dos Nobres de Espanha ser lançada por terra

A Louca Paixão do Rei Ramiro pela Linda Moura

OLIVEIRA - o Antepassado Bíblico omitido pelos Judeus