A Visão Fantasmagórica do Caminhão de Quinca Saldanha
Dando continuação às minhas origens, contarei aqui sobre um evento sobrenatural, que ocorreu com meu avô paterno, Manoel Ponciano Bezerra, nascido no Apodi, Rio Grande do Norte, em 1919. Homem de pouca conversa, muito menos de ficar inventando histórias.
Estava ele voltando de umas fazendas da direção que ia para Portalegre, de onde tinha comprado carnes de porco, que levava em um jumento, seguindo a pé para Umarizal, cidade onde morava.
Era de noite quando seguia por um caminho estreito de terra entre as fazendas. Foi quando percebeu a iluminação de dois faróis acesos atrás dele, que pareciam pertencer a um caminhão.
Afastou-se do meio do caminho, levando junto consigo o jumento, para dar passagem ao veículo. Mas as luzes daqueles faróis em vez de avançarem, se distanciaram. Ele achou estranho, mas prosseguiu seu trajeto. Novamente percebeu a iluminação se aproximando dele. E novamente se afastou para dar passagem. Porém, mais uma vez aquelas misteriosas luzes recuaram.
Isso foi acontecendo até ele chegar a uma grande pedra, ao lado de um enorme pé de angico, próximo à saída de Umarizal para Pau dos Ferros.
Depois que cruzou essa pedra, a estranha aparição sumiu. Diziam que essa pedra servia de referência para o temível Coronel Quinca Saldanha localizar um cemitério clandestino que mantinha ali, onde dava fim aos corpos de suas vítimas, que eram transportadas por um caminhão. Elas eram mortas em suas terras, em Caraúbas, município vizinho de Umarizal.
Esse foi o único relato de um evento sobrenatural que meu avô contou ao meu pai que ocorreu com ele. E acreditou que a visão que teve deveria se referir ao caminhão que costumava transportar a carga macabra.
A pedra já não mais existe. Foi demolida, segundo meu pai, para construção de casas.
Quanto ao Coronel Quinca Saldanha, a fama de suas maldades foi levada até à literatura de cordel, como na obra abaixo, A Sangrenta Luta no Seridó, escrita por Expedito F. Silva, impressa pela Secretaria de Educação e Cultura do Governo do Estado do Rio de Janeiro, em 1978.
Em seus versos, Expedito narra:
(...)
No jardim do Seridó
antigamente habitava
o Coronel Quinca Saldanha
todo mundo lhe odiava
número um no gatilho
por qualquer quiça matava.
Protetor de criminoso
falava em qualquer lugar
"se um escravo mentir
sem provas pra confirmar
eu solto uma cascavel
e faço ele pegar"
Comprava toda polícia
dinheiro nele sobrava
da mesma forma que ria
do mesmo jeito matava
assim vivem muitos anos
matando e ninguém falava.
Batizado e casamento
só se fazia escondido
porque se ele soubesse
estava tudo perdido
o padre deixa a igreja
saía doido varrido.
O juiz e o promotor
até mesmo o delegado
não queria nem por sonho
falar com este danado
porque já sabia a fama
deste coronel malvado.
Logo adiante, vemos Quinca se metendo em uma confusão com outro fazendeiro, durante um período de seca:
(...)
Não demorou muito tempo
o sol ficou encarnado
voltou a seca tristonha
o sertão ficou queimado
Quinca Saldanha não tinha
água para dar ao gado.
Saldanha na mesma hora
vendo do gado o maltrato
mandou logo o seu vaqueiro
levar seu gado sem trato
beber da água e pastar
nas terras de Furtunato.
Quando Furtunato soube
ficou igual um leão
pegou a caneta e disse
"eu mato aquele ladrão"
escreveu desta maneira
vejam bem a narração.
Dizia assim a leitura
"patife corno e covarde
de abrir a minha cerca
não te dei a liberdade
se insistir outra vez
lhe mato sem piedade".
"Sou um homem respeitado
no Jardim do Seridó
quando ler esta missiva
prepare-se não venha só
que o sangue vai correr
no meio do mocotó".
"Prepare lá suas armas
e não venha com brinquedo
eu com raiva arranco a onça
da furna do arvoredo
quanto mais um coronel
chifrudo e de pé azedo".
"No mais aceite um balaço
que eu vou te dar no peito
pode vir com chifre e tudo
que eu aqui dou um jeito
pra nunca mais tua égua
gostar de um homem direito."
Com bem cuidado selou
a carta com atenção
chamou um vaqueiro e disse
"não passe o pé pela mão
leve esta carta a Saldanha
entregue àquele ladrão".
O Saldanha ao ler a carta
ficou feito um cão danado
correu chegou na cozinha
estava um negro sentado
este deu-lhe um pontapé
foi pratos pra todo lado.
A pobre vovó Lucinda
que estava na cozinha
botando lenha no fogo
e pelando uma galinha
Saldanha cortou-lhe o seio
do peito da vovozinha.
Chamou a esposa e lhe disse
"hoje eu soube de tudo
que você andou fazendo
com um coronel abiúdo
agora eu quero saber
porque eu sou um chifrudo".
Mandou matar a esposa
em um lugar bem destante
um negro na mesma hora
com a força de um gigante
saiu com ela a cavalo
matou-a no mesmo estante.
Como Quinca Saldanha nasceu em 1872, percebe-se que há muita licença poética nestes versos, pois quando o coronel tinha 16 anos os escravos estavam sendo libertos pela Princesa Isabel.
Provavelmente, muitos negros que moravam e trabalhavam em suas terras eram tratados como se fossem ainda escravos por este Senhor Feudal do Rio Grande do Norte. Deveriam sofrer torturas a até serem mortos impiedosamente aqueles que não o tratavam com o respeito que ele exigia, pois há várias histórias de suas malvadezas que ficaram no imaginário popular potiguar, como esta que ouvi de meu pai quando eu era adolescente:
Um sanfoneiro, certa vez, falou à sua mãe que tocaria mesmo que fosse no inferno.
De noite veio um homem, todo de preto, falando que pagaria uma boa soma se ele fosse tocar em um jantar que seu patrão iria servir à várias personalidades.
- Deus te acompanhe, meu filho - assim se despediu dele a sua mãe.
Eles seguiram por um caminho que ele nunca vira. Chegados à casa onde se daria o evento, ele começou logo a trabalhar, tocando a sua sanfona. A casa tava cheia de gente rica e poderosa. Viu até o Coronel Quinca Saldanha entre os convidados.
Na hora que foram lhe oferecer refeição, ele se horrorizou com o que viu no prato: dedos e bicos de seios femininos eram o que estavam sendo servidos.
O anfitrião então lhe dirigiu a palavra.
- Você está no Inferno. Ouvimos seu chamado. Mas só não permanecerá aqui porque sua mãe te colocou uma proteção ao se despedir de você. Vamos te liberar. Mas como trabalhou, será pago.
E ele recebeu moedas com estranhas inscrições.
O homem que o conduzira até ali o levou de volta. O sanfoneiro, já em casa, correu e foi abraçar a sua mãe, agradecendo a ela por o ter abençoado antes de sua partida. Se arrependera muito de ter dito que tocaria até no Inferno. Ele contou tudo o que aconteceu.
A história foi se espalhando. Até que foi parar nos ouvidos do Coronel Saldanha, que mandou uns jagunços o trazerem até ele.
Quando o sanfoneiro chegou, trazido à força pelos seus capangas, o Coronel lhe falou que iria ter que provar que o viu no Inferno, ou seria torturado até a morte, começando por arrancar-lhes as unhas.
O sanfoneiro se desesperou. Como iria se salvar? Lembrou então do dinheiro que o Diabo lhe dera. Apresentou as moedas, que estavam em seu bolso, ao terrível Quinca. Este, chamou alguém de sua confiança, que era profundo conhecedor em operações de câmbio. Mas essa pessoa desconhecia a que idioma pertencia aquelas inscrições.
O perverso coronel liberou, então, o sanfoneiro, de seu terrível destino.
Por essas histórias, eu acredito que meu avô viu algo emanado pelas energias negativas que teria produzido o famoso coronel de Caraúbas.
Como nasci em São Paulo, bem distante do Rio Grande do Norte, por muito tempo cheguei a pensar que o Quinca fosse apenas uma figura lendária da terra natal de meu pai. A figura histórica do Coronel Quinca Saldanha só me chegaria com a Internet, onde localizei os relatos do Doutor Marcos Pinto, historiador e advogado do Apodi.
Tive a enorme surpresa, na primeira quinzena de junho de 2022, de o Doutor Marcos me contar que conhecia a história do Sanfoneiro que Tocou no Inferno, tendo inclusive conhecido seu neto, que foi quem lhe transmitiu essa história, e lhe disse o nome do avô - Pedro Pinheiro de França. E o Grande Historiador do Apodi e do Rio Grande do Norte ainda me surpreendeu mais uma vez ao dizer que publicou um artigo em um famoso jornal de Mossoró, onde reside desde 1974, o Gazeta do Oeste, no qual narrou a história do tocador de sanfona, que teria tocado no Inferno na época da Seca de 1932, com o título: PEDRO PINHEIRO E O FORRÓ NO INFERNO.
Na segunda postagem sobre Quinca Saldanha, O PADRINHO DO IRMÃO DO MEU BISAVÔ ERA O PODEROSO CHEFÃO DO RIO GRANDE DO NORTE, será apresentado o seu lado histórico, que também demonstra seu lado terrível, que fez até mesmo Lampião deixar de pegar um trem que o levaria rapidamente à Mossoró, pegando de surpresa a cidade. O Rei do Cangaço preferiu contornar as terras do perverso fazendeiro, o que o fez perder o trem, e os passageiros alertarem o povo de Mossoró sobre seu ataque, levando-o à sua primeira grande derrota.
Se alguém conhece alguma lenda sobre o Quinca Saldanha, conte-a nos comentários.
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